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quinta-feira, 12 de abril de 2012

BIOGRAFIA

O Professor Senra. Um modelo de homem probo e culto



Escrever umas ligeiras notas sobre o professor Senra, que viveu e ensinou em São João de Areias, é muito agradável mas simultaneamente difícil pois que não é com poucas palavras que podemos retratar uma figura grande na sua cultura na sua bondade, indescritível na sua simplicidade, extraordinário na sua abnegação.

Durante mais de 40 anos foi o homem que mais contribuiu para a elevação cultural de São João de Areias. Esta freguesia extensa tem um património cultural invejável e o seu povo soube sempre avaliar e aproveitar a influência do saudoso mestre.

O professor António Alexandre Júdice Senra era natural de Riodades (http://www.riodades.net/), freguesia do alcantilado e pitoresco Alto Douro. Descendente, pelo lado materno, da família Júdice oriunda de uma casta de nobres de Itália. Seu pai era tesoureiro da Fazenda Pública, que exerceu funções em Viseu, filho de um republicano que teve parte no 5 de Outubro de 1910.

A primeira nota da sua simplicidade foi o repúdio pelos pergaminhos aliados à ascendência materna, recusando o uso do apelido Júdice, eliminando-o de tudo o que assinava, passando a identificar-se por António Alexandre Senra, como forma de manifestar o ressentimento por a família materna não ter acolhido a entrada do seu pai no clã afidalgado.

O professor Senra foi dos espíritos mais brilhantes da inolvidável plêiade de professores, oriunda sobretudo dos finais da primeira República e que muito resistiram à avalanche de ultramontanismo dos anos 30 e 40 do século passado.

O professor Senra era da corrente professoral da categoria de Tomás da Fonseca, de Manuel Monteiro e professor Guerra os quais, tive o privilégio de ouvir e com quem muito aprendi na minha já remota juventude.

Como estes homens das beiras, a sua cultura era eminentemente popular.

Como os professores acima referidos, colaborou em diversos jornais que foram desaparecendo, vítimas do citado ultramontanismo gerador do fascismo que durante mais de 40 anos se instalou em Portugal. Tais jornais que foram fenecendo eram dos concelhos da região.

A cultura do professor Senra abrangia desde tudo o que se relacionava com o cultivo da terra, com as Ciências da Natureza, a Zoologia, Geologia, etc., até às Artes e Literatura.

Tinha um gosto especial pela História do Mundo, das religiões, etc. Era, para todos quantos o gostavam de ouvir, uma enciclopédia viva, dotado de uma memória excepcional. Citava trechos inteiros dum prosador que muito admirava, Fialho de Almeida. Declamava poemas inteiros de Guerra Junqueiro (Finis Patriae, O Melro, Os Simples).

Conhecia profundamente Garrett, Herculano, Quental, Eça, Ramalho, Aquilino, Torga, Ferreira de Castro.

Leitor assíduo do romantismo francês de Victor Hugo, Balzac, Zola.

Conhecia bem o pensamento de Rosseau, de Voltaire, dos enciclopedistas.

Firmemente convencido pelos ideais republicanos e democráticos era seguidor do pensamento democrático e cooperativista de António Sérgio. Acompanhando também, com particular interesse, a produção cultural de dois dos maiores vultos da cultura nacional, Abel Salazar e Bento de Jesus Caraça.

Fiel assinante da "Biblioteca Cosmos".

Desta forma se explica que, apesar de viver num meio rural, naqueles tempos bastante isolado, tinha melhor estofo ou bagagem cultural que muitos intelectuais dos meios culturais por excelência.

Não aceitava qualquer espécie de ditadura dele partindo as maiores críticas e manifestações de reprovação pela invasão da Hungria (crê-se que em 1956).

Havia quem dissesse que era "maçon". Por mais fidedigna que tal opinião possa parecer não creio que pertencesse à maçonaria. Embora conhecesse a história e os ritos de tal sociedade, era avesso a tudo o que fossem compromissos com qualquer partido ou associação que colidissem com a sua absoluta liberdade.

Era este homem, de olhar fino e inteligente, de aparência débil, que durante mais de 40 anos acompanhou, desde crianças, muitos homems de São João de Areias. Muitos emigraram para a América do Norte, Brasil, África. Alguns lugraram seguir cursos universitários. Tantos os que vindos de longe, de férias, vinham visitá-lo, manifestar-lhe o seu carinho, presenteá-lo, o que muito o comovia.

Abnegação, sensibilidade, profunda cultura.

Vivia para a família: mulher; três filhas e netos (alguns dos quais não chegou a conhecer). A sua distrcção era o cigarrito que a esposa amantíssima lhe comprava. Mas aquilo de que mais gostava, para descansar física e psíquicamente, era da pesca nas acolhedoras margens do Mondego.

Lia muito e sempre todos os dias.

O seu sogro, Adelini Antunes (que não cheguei a conhecer) era católico e não gostava dele nos primeiros tempos. Mas à medida que o foi conhecendo elegeu-o o seu melhor amigo.

A sua verticalidade trouxe-lhe naturais dissabores. Participaram dele junto da Direcção Escolar de Viseu, denunciando coisas disparatadas tais como a leitura do "Avante" (jornal clandestino do PCP) às crianças da escola, aconselhá-las a apedrejar os sinos da igreja, etc.

Como que em atitude de investigação, deslocou-se a São João de Areias o próprio Director Escolar A. Freitas (já falecido), que abordou discretamente um homem idoso o qual o esclareceu de que se tratava de um chorrilho de mentiras. O processo foi para o cesto dos papeis ou foi arquivado, outra coisa não era de esperar do director que conheci, também pelas funções que vim a exercer.

Tinha pouco mais de 57 quando começou a doença prolongada que lhe ceifaria uma vida a todos os títulos preenchida e exemplar.

Coimbra, 27 de Janeiro de 2012
Osvaldo Ribeiro Peliz - Jurista